O caminho de ferro em Coruche


A exposição "O caminho de ferro em Coruche" pretendeu comemorar o centenário da linha Setil-Vendas Novas. Esta exposição contou com inúmeras colaborações de instituições e de particulares, da qual destacamos a Associação dos Amigos do Museu Nacional Ferroviário, o Museu Nacional do Traje, o Museu Nacional Ferroviário,  a Associação para o Estudo e Defesa do Património Cultural e Natural do Concelho de Coruche, a Herdade da Quinta Grande, a Câmara Municipal do Entroncamento, a CP, a Refer e o Arq. Jorge de Brito e Abreu.

A exposição desenrolou-se em dois momentos: uma primeira sala onde se deu conta da evolução e desenvolvimento do "universo ferroviário" e uma segunda sala onde se mostrou a investigação sobre o que da linha Setil-Vendas Novas se refere ao concelho de Coruche.

Esta exposição esteve patente ao público entre 24 de abril e 31 de dezembro de 2004 e fez-se acompanhar do respetivo catálogo (consultável online).

Leia aqui a Recensão Crítica sobre o mesmo.

 









Apontamentos fotográficos da exposição:


 

 


 

RECENSÃO CRÍTICA DO CATÁLOGO

 

Exposição Temporária. Catálogo, (Coord. Domingos Francisco), Coruche, Museu Municipal de Coruche, 2004, 100 páginas, ilustrado.

"A regularidade e a qualidade das iniciativas concretizadas pelo jovem Museu Municipal de Coruche, reflexo da dinâmica equipa que o anima e de uma política cultural corretamente compreendida e assumida pela autarquia local, merecem público reconhecimento e justificada divulgação. O catálogo da exposição comemorativa da inauguração oficial do caminho de ferro em Coruche é um excelente exemplo do que dissemos, ao mesmo tempo que realça a vantagem de preservar o efémero, próprio de uma exposição temporária, transformando-o num instrumento de trabalho, como é a publicação que aqui recenseamos.

Vivemos um tempo dúbio, no qual a obsessão da velocidade e da rentabilidade ameaça subverter a escala humana e eliminar definitivamente qualquer relação entre o útil e o agradável. O desaparecimento de linhas férreas e a transformação dos passageiros em utentes resultam diretamente desta mundividência utilitarista. Não se veja nesta reflexão uma recusa do progresso, de que os caminhos de ferro foram um símbolo poderoso e multifacetado, mas apenas uma chamada de atenção para certas realidades que não podem ser esquecidas, em parte motivada pela nostalgia, palavra que imediatamente invoca viagens e regresso às origens, de muitas deslocações em caminho de ferro, parte delas em linhas secundárias como a que serve, há um século, a vila ribatejana de Coruche.

O volume tem excelente aspeto gráfico, não se limitando a enumerar as peças reunidas na exposição, apoiada por numerosas entidades.
O Catálogo propriamente dito é precedido por uma série de contributos redigidos para a ocasião e outros anteriormente publicados, agrupados nas seguintes secções: História; Estratégia; Memória; Futuro; Anexos. As ilustrações, selecionadas com oportunidade, pancromáticas e coloridas, são de boa qualidade e razoável quantidade, ainda que num ou noutro caso, sejam pequenas. Contribuem eficazmente para a compreensão do texto, aliando da melhor forma a imagem e a palavra. Apenas em relação aos mapas reproduzidos (pp. 34, 44) temos que lamentar a sua muito reduzida dimensão, pois torna difícil a leitura dos mesmos, sobretudo para quem não conhecer a região em causa, tanto mais que já lá vai o tempo em que decorávamos os percursos de linhas e ramais ferroviários.

O volume abre com um texto do Dr. Dionísio Mendes, presidente da edilidade coruchense, cuja tónica se centra, muito naturalmente, no problema das acessibilidades ao vale do Sorraia (p. 7). A secção História inicia-se com duas contribuições de Luís Batalha, intituladas respetivamente Os caminhos de ferro em Portugal (pp. 9-15) e Coruche – De Setil a Vendas Novas (pp. 17-25), as quais constituem sínteses bem conseguidas. No primeiro artigo trata das condições da introdução do caminho de ferro em Portugal, acontecimento que não deixou de suscitar reticências, tanto como o plano de renovação da rede viária, tão evidentes em escritos de Almeida Garrett ou de Júlio Dinis, enquanto no segundo aborda a construção da linha férrea entre Setil e Vendas Novas, caracterizada por algumas dificuldades técnicas. Não deixa de ser significativo que, numa época considerada de indisciplinada decadência, caso dos anos derradeiros da Monarquia, a obra ficou pronta um ano antes do prazo previsto (p. 21), o que hoje é pouco habitual. É certo que nela chegaram a trabalhar 5000 operários.

O texto Coruche e as acessibilidades (pp. 27-32) foi escrito quase há meio século, por João Gonçalves, constituindo um documento do maior interesse para caracterizar o que eram as dificuldades de comunicação, mesmo com povoações pouco afastadas da capital, como Coruche, e qual o verdadeiro significado da existência do caminho de ferro nos anos cinquenta do século passado. Uma referência muito curiosa, a propósito das evoluções de um numeroso grupo de campinos à passagem do comboio inaugural na estação de Coruche, comboio no qual seguia a Família Real e numerosas individualidades, merece atenção, pois parece pôr em causa a ideia de que parte do trajo de campino, o barrete verde e a jaqueta encarnada, remonta à época da Exposição do Mundo Português (p. 29). Será assim? Outro aspeto que queremos destacar é o da importância do tráfico fluvial no Sorraia, ainda em meados do século XX, bom exemplo de um sistema de transporte integrado, funcionando os portos fluviais como interface de comunicações (pp. 31-32).

Na secção Estratégia encontramos dois artigos. No primeiro, Gilberto Gomes escreveu sobre A linha do Setil a Vendas Novas. 1904-2004 (pp. 34-45), traçando um quadro da evolução do funcionamento da linha, na verdade ramal, desde o seu estabelecimento, focando em especial as suas limitações e potencialidades, sobretudo no que respeita ao tráfico nacional Norte/Sul e movimento regional. Chama a atenção, o que não é menos importante, para a necessidade de se efetuarem estudos sobre as diferentes linhas férreas, como esta, uma vez que não existem. Parece-nos um excelente campo de investigação, tanto para a história económica e social, como para a arqueologia industrial.

Ainda sobre a Linha de Setil a Vendas Novas (pp. 47-53), agora mais sobre aspetos técnicos da mesma, nomeadamente infraestruturas, exploração comercial e material circulante, elaborou José da Silva o segundo texto, realista e claro, sem esquecer as causas da decadência da linha (p. 51), parte das quais se vão repetindo noutras linhas e ramais, como é o caso da prioridade atribuída ao transporte rodoviário. Não vale a pena invocar a fraca densidade populacional da zona atravessada pela linha Setil-Vendas Novas, pois a Linha de Oeste, por exemplo, conhece o mesmo declínio acentuado, em particular no transporte de passageiros. Fazemos aqui uma chamada de atenção, motivada pelo nosso interesse pelo património arqueológico industrial, para a formidável ponte de ferro Rainha D. Amélia, uma das maiores da Península Ibérica (pp. 47-48), desativada em 1980. Qual é o seu estado atual? No que se refere ao material circulante, referido no artigo com pormenor, gostaríamos de encontrar indicação da origem das locomotivas e anos de entrada em funcionamento, o que contribuiria para esclarecer os não especialistas.

A secção Memória conta com dois textos de grande poder evocativo, No cais da memória (pp. 55-59), de Isabel Chaparro, e Do Rossio à Charneca, de Gonçalo Ribeiro Telles (pp. 61-63), este último publicado anteriormente pelo jornal Expresso. São dois relatos que exprimem, com alguma emoção, como é natural, recordações de infância, evocando as velhas viagens, intermináveis não apenas pela saudade, antes pelo reencontro. Este aspeto mais intimista não é dos menores contributos desta feliz publicação, tanto mais que faculta uma dupla visão, digamos interior e exterior, do funcionamento da linha in illo tempore.

O artigo de Manuel Tão integra a secção Futuro, intitulando-se, oportunamente, Linha de Vendas Novas. Um olhar sobre o futuro (pp. 65-69). O autor, especialista em economia de transportes, chama a atenção para a importância da linha de Vendas Novas como traço de união entre o sistema ferroviário do Sul e o do Norte, sem esquecer a questão da falta de passageiros, recorrente em vários textos do catálogo, situação que considera poder ser alterada se a ligação entre Setil e Coruche passar a contar com material razoável e horários viáveis. Esta questão repete-se em muitas outras linhas secundárias, mas no caso de Coruche a relativa proximidade da capital poderá constituir um fator decisivo de desenvolvimento, se a estratégia não for a de criar mais um dormitório suburbano. Ficamos também a saber que o último Plano Ferroviário Nacional remonta a 1927, não tendo sido totalmente executado (p. 68). Congratulamo-nos particularmente com o reconhecimento explícito da importância futura do transporte ferroviário articulado com o transporte marítimo (p. 69), fundamental para o nosso país.

Os Anexos voltam a transmitir duas distintas visões sociais da mesma realidade, uma a nível do grupo social decisório, através de documentos camarários, onde encontramos nomes ribatejanos bem conhecidos, e através do testemunho oral de um antigo trabalhador ferroviário e sua esposa. No primeiro caso, Raquel Marques escreveu sobre o caminho de ferro nas atas da Câmara (pp. 71-84), informando-nos a partir de documentos contemporâneos oficiais dos sentimentos, alguns de reserva (pp. 78, 82), suscitados pela inauguração do caminho de ferro e visita da Família Real. É muito curiosa a nota respeitante ao bodo a duzentos pobres, ato vulgar na época mas que a autora sentiu necessidade de explicar ao leitor atual (p. 71). Nas páginas da Ilustração Portugueza, por exemplo, encontramos com frequência fotos alusivas a estas distribuições caritativas, exemplares das desigualdades sociais e ilustrativas dos francos comentários de Orlando Ribeiro sobre as características da pobreza em Portugal. A Entrevista, conduzida por Luís Batalha e Eugénia Dias, a Augusto Marques e Lurdes Silva (pp. 85-93), constitui um documento vivo, memória de experiências e vivências que contribuem para um melhor conhecimento de múltiplos aspetos do trabalho dos ferroviários e da vida do caminho de ferro enquanto instrumento de comunicação e de coesão social noutros tempos.

O Catálogo, da autoria de Dulce Patarra (pp. 94-97), embora se limite a 25 peças, em parte cedidas por entidades públicas e por particulares, constitui um repositório de muito interesse, sobretudo para os interessados em arqueologia industrial e história social. Para os leigos, as fichas concebidas com clareza e simplicidade, representam um guia bem ajustado à finalidade da exposição e à necessidade de uma informação básica, acessível ao público potencial da mesma. A peça n.° 13, um telefone de via marca Ericson (pp. 54, 96), uma das mais interessantes da exposição, é referida como de metal e plástico. Julgamos que, atendendo à época de fabrico não poderia ter sido utilizado o plástico, devendo entender-se por baquelita.

A exposição comemorativa da inauguração do Ramal de Setil a Vendas Novas e o catálogo que a apoiou constituem exemplos do interesse crescente pela história local, tão rica de possibilidades de investigação e caminho seguro para uma melhor compreensão do todo nacional. Contribuiu também para realçar o impacte do acesso ao caminho de ferro no vale do Sorraia, quebrando uma situação de pesado isolamento, não obstante o reconhecido papel de Coruche nas comunicações anteriores à Revolução Industrial. Um romance recente de Mário Ventura, cujo cenário é uma pequena vila e a sua estação de caminho de ferro em 1910, vila que bem podia ser Coruche, descreve de forma viva a importância da via férrea e do telégrafo no início do século XX. Por isso mesmo o Museu Municipal de Coruche é merecedor, por esta iniciativa, de elogiosa referência e permanente incentivo.

Num tempo de triunfo do transporte rodoviário, apesar de poluidor e detentor de fraca capacidade de carga, quando quase se tornou obrigatória a posse de um veículo automóvel, os caminhos de ferro têm conhecido redobradas dificuldades. É com tristeza que assistimos ao encerramento de linhas e ao fecho de estações, por razões que se prendem muito mais com o presente do que com o futuro, desenvolvendo uma inadmissível conceção dualista do país. Gostamos de viajar de comboio, desde sempre, e recordamos muitas vezes viagens de outros tempos, em composições com máquinas a vapor e carruagens alemãs provenientes das indemnizações da I Guerra Mundial ou em automotoras Nohab, evocadas neste catálogo. Que nos seja permitido lembrar o passado, tão presente nesta exposição, com longas viagens estivais entre Évora e Lisboa ou Tavira, sentido o cheiro do creosote, o vibrar dos fios telefónicos junto à via e o canto das cigarras quando o comboio se detinha nalgum apeadeiro ou pequena estação sem povoação à vista, transmitindo-nos a sensação de que, para além do cais, começava outro mundo, isolado, marginal, com o qual só o comboio, tal como um navio, podia comunicar.

As exposições invocam e pretendem ilustrar o passado, estimulando a memória ou as suas representações. Por isso nos sentimos tentados a elaborar esta recensão crítica, porque o tema envolve história, tecnologia, memória e mito, pois o caminho de ferro também envolve mito, que pode ser o mito imperial do Transiberiano ou o dos vagabundos americanos deslocando-se nos vagões dos enormes comboios de costa a costa. O caminho de ferro mudou Portugal, constituindo um indiscutível fator de progresso, não só pelas facilidades que introduziu, a nível da circulação de pessoas e de mercadorias, mas por ter alterado, definitivamente, a conceção de tempo e de espaço. Faz parte integrante da nossa história, não havendo nada mais dramático que a história sem futuro, sobretudo quando reflexo de alterações ditadas por conceções alheias ao bom senso e aos interesses essenciais da comunidade. Por isso, terminamos desejando que, daqui a cem anos, o Museu Municipal de Coruche repita o tema desta exposição, com mais história e mais memória."

Vasco Gil Mantas, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, in Revista Portuguesa de História, t. XXXVII (2005), pp. 467-472.

 

 

 

Atualizado em 14-01-2021